Resenhas

LOPES, Cássia. Gilberto Gil, a poética e a política do corpo. São Paulo: Perspectiva, 2012, 392 p.


O MELHOR LUGAR DO MUNDO É AQUI E AGORA 

Nos idos dos anos 60, quando Dona Canô avisou ao seu filho Caetano Veloso para ver na televisão “o preto de que ele gostava”, selou uma parceria e, sobretudo, uma amizade, quase um compadrio daqueles que os baianos interioranos prezam de modo indelével, ainda que muitos compadres se afastem ao longo da vida, o que não é o caso dos que me refiro aqui. O preto nomeado por Dona Canô, bem ao jeito santamarense, é Gilberto Gil, ex-presidente da Fundação Gregório de Mattos e ex-ministro da Cultura, cargos que ocupou sem que perdesse a referência maior de ser um cantor e compositor de música popular brasileira. É sobre o material poético que Cássia Lopes se debruça, esmiuçando-o em uma reflexão merecedora da atenção da editora Perspectiva em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA. 
Autora de Gilberto Gil, a poética e a política do corpo, Cássia Lopes é ensaísta, cronista e professora de Teoria da Literatura, Literatura Dramática e Criação Literária do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia. Seu campo de atuação estende-se como docente do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas (PPGAC) e do Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura (PPGLL) da UFBA. A escolha do tema de doutoramento recaiu sobre o cantor-compositor visto pelas lentes de Cássia Lopes, atenta em captar facetas de Gilberto Gil e suas andanças pelos “becos sociais e revelar uma saída, que faz escoar o desejo de transformação de si, do outro e de tudo que envolve as vidas humanas em sociedade”. 
O alentado estudo é composto de uma introdução, quatro capítulos e a conclusão cujo nome é Alô, Alô, Aquele Abraço, título que remete à memorável canção que, no seu tom de despedida festiva, marcou a ida do compositor para o exílio londrino juntamente com Caetano Veloso e as respectivas famílias. Com este título conclusivo, a autora despede-se do leitor, deixando ecoar a refestança de sua escrita, um modo de reconhecimento da alteridade. 
Em 329 páginas, incluindo a potente lista de referências, a autora desdobra os dois conceitos, poética e política, para identificá-los neste corpo que se construiu e se constrói no real e em nosso imaginário. Como o parceiro Caetano Veloso, Cássia Lopes gosta do preto da mesma maneira que gostamos desde que iniciou sua carreira apresentando-se nos programas musicais da TV Itapoan. Ainda que não seja uma unanimidade, pois como dizia o dramaturgo Nelson Rodrigues, “toda unanimidade é burra”, o artista é captado pelos olhos da autora. 
Lopes toma para si a tarefa imensa de decodificar as origens pelo Nordeste, o cancioneiro e sua refazenda histórica, a postura pública como ministro, os duplos do cantor, os caminhos e descaminhos do compositor baiano pelo Tropicalismo; todo o trajeto é feito de maneira apaixonada sem que perca a dimensão objetiva de sua investigação, utilizando-se de um quadro teórico que lhe serve como ferramenta e guia. 
Cássia Lopes demarca um vasto campo de matrizes ibéricas, barrocas, africano-sertanejo-nordestina e modernista (estas geridas pelos vanguardistas em 1922) e também ameríndias, aglutinadas no imaginário de Gilberto Gil. Juntam-se a esse amplo universo, as matrizes em ebulição nos meados da década de 60, em seus anos intensamente politizados pela ortodoxia da esquerda nacionalista, posta em reviravolta nos tempos do Tropicalismo, marco de ideias e práticas musicais banhadas pelas aberturas disseminadas pelo movimento contracultural. A consistência do estudo revela também as aproximações do músico com a poesia concreta. 
Explorando estes vastos territórios, Cássia Lopes narra uma trajetória pautada pela transformação do sujeito. Sujeito que se modifica física e artisticamente ao longo da vida. Sujeito tecedor de um discurso polifônico escrito no corpo poetizado e politizado. Movido por constante inquietação o cantor-compositor “antenado” poudianamente com seu tempo (“os artistas são as antenas da raça”, Ezra Pound), segue atrás dele e lança-se para além dele. É este corpo evidenciado que se agiganta no dizer de Cássia Lopes, pois construído identitariamente na cultura e pela cultura, cabedal que explode poeticamente em sua música e em suas atitudes, discursos não excludentes. Em sua produção, imbricam-se as influências recebidas de Luiz Gonzaga, de Dorival Caymmi, da Banda de Pífano de Caruaru, de João Guimarães Rosa e dos batuques afro-brasileiros advindos das senzalas e dos terreiros, geradores do samba, ressaltadas e analisadas com bastante criatividade. 
Desde a introdução, Cássia Lopes anuncia: “A proposta de ler a poética e a política do corpo de Gilberto Gil nasce da vontade de refletir sobre os modos de pensar o tecido social e artístico brasileiro, de rastrear as contingências que pediram para este compositor abraçar o papel de intérprete não só de suas canções, mas também da formação do Brasil”. E, ao longo da narrativa, expõe as dobras desta poética e desta política, explicitando para os leitores os dois conceitos – suas polifonias – escolhidos para urdir de maneira inteligente um discurso que não abdica do rigor acadêmico, mas se deixa penetrar compreensivamente com argumentações que não afastarão o leitor comum. Assim, adentra-se o universo de Gilberto Gil, visto nos lugares da politização do estético e na estetização da política. 
O livro resenhado destaca de maneira muito clara a postura pluri-universalista identitária do cantor-compositor que de sua casa baiano-ibero-africana transita nas fronteiras da antivitimização que cerca os atuais discursos sobre a negritude. O artista, que é fruto da diáspora, coloca-se no mundo a partir de seu porto, a Cidade da Bahia, e da encruzilhada entre os diversos Ocidentes e Orientes para fazer soar seu corpo-voz, expandindo uma “constelação de signos poéticos que povoa a história de seus projetos e sonhos”. Nascido em uma sociedade sincrética, Gilberto Gil, negro-mestiço, sabe como nunca sintonizar seu corpo a outros corpos, atitude visível na totalidade do livro. 
Colocando com ressalva o tema do amor e do erotismo, por considerar da ordem do privado e temática cada vez mais exposta e banalizada nos meios do show business, Cássia Lopes não se furta ao assunto. Com bastante propriedade, atém-se ao universo poético do artista, toma as letras das canções e imagens das capas dos discos para urdir o discurso erótico-amoroso, apoiando-se também em depoimentos demonstrativos das redes de afetos que o músico tece ao longo de sua vida. 
Dessas páginas saltam o corpo que se transmuta em afetos reveladores das representações de identidades por onde se embaralham o masculino e feminino, “Pela lente do amor / sou capaz de enxergar / toda moça em todo rapaz”, deixando entrever que a reflexão sobre o erotismo caminha por se “entender a criação do corpo na relação com a alteridade, já que o outro assume-se como elemento desencadeador do estado erótico, sendo por conseguinte, peça inextricável do jogo social”, como explicita Lopes. 
Da mesma maneira elegante com que trata do assunto acima enfocado, há páginas significativas sobre o show Doces Bárbaros (1976) e sobre o episódio da prisão de Gil por porte de maconha, amplamente divulgado sob diverso vieses. O acontecimento está submetido a uma análise bem contextualizada nas relações arte e vida. Sem que se aprofundem as considerações que o cantor-compositor tem com o sagrado, sua metafísica, o tema não é deixado de escanteio. É perceptível como a autora não descuida desta faceta sem que explore – uma opção – com mais contundência este aspecto da poética do corpo gilbertiano. Esta observação não diminui as escolhas e abordagens da pesquisadora. O tema anunciado aqui e ali pode servir de indicador para quem se interessar em aprofundá-lo. Pistas são fornecidas e podem render outros estudos sobre o baiano que anima há décadas os nossos corpos brasileiros; e não somente os nossos, já que a sua música ultrapassa barreiras geográficas e adentra os limites culturais do mundo marcadamente pós-colonial, globalizado, necessitado de ouvir os versos da canção: “A paz invadiu o meu coração / De repente, me encheu de paz/ como se o vento de um tufão /arrancasse meus pés do chão / onde eu já não me enterro mais”. 
Ao concluir seu trabalho, sobre poética e a política no corpo de Gilberto Gil, a autora avisa com bastante ênfase o quanto é inaceitável um arremate muito simples, mesmo definitivo, dizemos nós. Cássia Lopes sabe bem: uma vida em processo não se deixa prender em uma categorização, ainda que rigorosa, nem em uma idealização. A sua escritura dançante desvia-se de tal armadilha. Precavida da tietagem acrítica, a autora investiga os diversos aspectos de uma personalidade multiforme, que se mostra coerente, reconfigurando o imaginário da nação, dialogando dialeticamente com o passado no tempo de agora. 
Competente e criativa em seus propósitos, Cássia Lopes oferece uma obra de fôlego, cuja linguagem se articula na vertente do ensaio e da pesquisa documental. Tratando do artista, o livro se abre para lugares da cultura brasileira, seus conflitos, suas contradições, seus acertos – muitos; seus desacertos - enormes. Isto não impede que Gilberto Gil cante em alto e bom som: “o melhor lugar do mundo é aqui e agora”, sem que se leia aí um nacionalismo tacanho que por vezes toma conta dos discursos musicais ou não sobre a Pátria Amada, mas revela um conhecimento da metafísica oriental. 
Cássia Lopes soube ouvir os chamados deste corpo poético e político. Usando das referências inteligentemente, ela nos diz que a obra de Gilberto Gil figura mu-dança. Por isto o livro se torna obrigatório nos diversos campos disciplinares entrelaçados em suas páginas, sendo uma contribuição inestimável para os estudos acadêmicos. Mas é, sobretudo um documento para aqueles – fãs ou não – que queiram se deleitar com uma escrita rigorosa, sem arrogância do fetichismo dos conceitos que por vezes tornam os objetos de estudo um código difícil de ser decifrado. Não é o caso do livro Gilberto Gil, a poética e a política do corpo. Desejo então uma boa leitura. 


Salvador, 11 de outubro de 2012. 


Raimundo Matos de Leão 
Escritor, doutor em Artes Cênicas 
e professor da Escola de Teatro - UFBA





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Cotidiano revelador

CARLOS RIBEIRO

Escritor, prof. da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
(carlosribeiroescritor.com.br)

As crônicas reunidas no livro Rumor das horas, da ensaísta, cronista e professora de Literatura da UFBA, Cássia Lopes, nos conduzem, com fascínio e renovada surpresa, a minuciosos pormenores do cotidiano. Nelas, a estranheza dos temas e das abordagens ganha uma ressonância incomum quando combinada com a familiaridade da crônica como gênero marcado pela simplicidade, clareza e fácil comunicação com os leitores. Mas, como sabemos, há níveis de leituras. E Cássia, se, por um lado, atende a um deles, por outro exige um tipo de leitor muito especial: aquele que possa acompanhá-la pelas zonas limítrofes dos acontecimentos e objetos que expõe nos seus textos.

Vejamos, por exemplo, a crônica que dá título ao livro. Nela, a simples contemplação de uma ferrovia e de um trem, no qual “correm meus sonhos, árvores que passam, sem acenar nenhuma saudade”, abre espaço para a minuciosa investigação de um microcosmo de manchas, de insetos e flores que podem ser esmagados a qualquer momento. E, no momento seguinte, mergulha-nos, sem aviso, na dimensão subjetiva das intenções, das vertigens, das expectativas. Afinal, “Esperar um trem prevê o desenho da paisagem, a expectativa de uma carga, de um olhar perdido, de luzes, de fumaça desfazendo-se no céu”.
 

Através da expressão lírica, vivencia-se uma experiência que só se revela onde objeto, linguagem e sentimento estabelecem um pacto. E cujo principal efeito é aquele “estalo” que faz o leitor despertar. E dizer, para si próprio: “sim, é isto mesmo!” O trem, em movimento, traz consigo, lá onde “a quietude das pernas ganha sentido nos bancos”, a letra trêmula de quem quer escrever no seu interior, um gesto perdido, um adeus sem resposta, a coragem para enfrentar a noite, as vestes amassadas, os pulmões cheios de ar, “uma vertigem causada pela respiração do maquinista, pelo delírio do vizinho, pelo perfume que, inesperadamente, exala do outro”.
 

            O leitor poderá, tal como o trem da crônica, prosseguir nessa viagem, visitando as diversas estações deste livro fascinante: a do mergulho voyeurista na intimidade de um(a) desconhecido(a) a partir do conteúdo de uma mala trocada durante uma viagem; a solidão e vazio profundos de uma mulher obcecada pela limpeza da casa que guardava “tantos objetos sem uso, dezenas de jantares perdidos, brincadeiras negadas sob as esporas da beleza, em torno de uma ordem familiar de uma dona de casa”; a bela elegia aos loucos das cidades do interior, que conseguem ouvir, tal como o personagem de Guimarães Rosa, o “recado do morro”, uma linguagem só por eles decodificada – mas que diz respeito a todos nós.

            Não é isto, justamente, o que Cássia Lopes faz no seu livro? Assim, disfarçadamente, levando-nos em caminhadas (quase) distraídas pelas ruas de Lisboa, de Coimbra, do Porto, de Copacabana, ou na Serrinha de sua infância; colhendo aqui e ali lembranças de Borges, Saramago, João Cabral, Gláuber, Drummond e Miguel Torga, mas também de Ernesto da Vanguarda, não vem ela nos trazer esses
recados, tão urgentes à nossa humanidade que se esvai dia após dia? Com sua intensa poesia, traz-nos a percepção clara e lúcida de que é a Vida, em sua inteireza e profundo mistério, que está nos detalhes. E que fica mais fácil, talvez, apreendê-la, “quando se nasce no sertão”, pois é onde se aprende, desde cedo, “a contemplar o vôo dos urubus: o baile entre a vida e a morte”. 

            Em tempo: o livro, com apresentações de Evelina Hoisel e Myriam Fraga, traz belas ilustrações de Fernando Oberlaender.
RUMOR DAS HORAS / CÁSSIA LOPES / EPP/BANCO CAPITAL / 112 P.

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